RELATÓRIO FINAL DA PLATAFORMA EDVAW (2019)
Tradução livre do relatório final publicado no site da ONU pela plataforma EDVAW: StatementVAW_Custody.pdf (ohchr.org)
A violência de parceiros íntimos contra mulheres é um fator fundamental nas decisões sobre guarda de crianças, atestam especialistas em direito das mulheres
(31 de maio de 2019) A plataforma de mecanismos independentes sobre a eliminação da discriminação e violência contra a mulher das Nações Unidas (Plataforma EDVAW) 1 manifestou sua preocupação com relação a padrões encontrados em diversas jurisdições ao redor do mundo que ignoram a violência de parceiros íntimos contra mulheres ao tratar casos de determinação da guarda de menores. Esses padrões revelam preconceito discriminatório de gênero e estereótipos de gênero que ferem as mulheres. Ignorar a violência de parceiros íntimos contra mulheres na determinação da guarda de crianças pode resultar em sérios riscos às crianças e portanto deve ser considerada a fim de certificar e garantir a proteção efetiva dos menores.
Os membros da Plataforma trataram o tema durante a conferência sobre “Os direitos das mulheres nas intersecções: fortalecendo a cooperação internacional para o fim das lacunas entre estruturas legais e sua implementação”, tendo como anfitrião o Conselho da Europa e ocorrendo a 24 de maio de 2019 em Strasbourg, na França. Na sua avaliação de acompanhamento de resultados, a Plataforma pediu a manifestação dos Estados a prestarem atenção especial a estes padrões e a tomarem as medidas necessárias a fim de assegurar a implementação de critérios internacionais que requerem que a violência praticada pelos parceiros íntimos contra as mulheres seja cuidadosamente avaliada na determinação da guarda de crianças.
Os membros da Plataforma acreditam que as relações abusivas entre os pais afetam predominantemente as mulheres e têm impactos diretos na vida das crianças, mesmo assim, a violência contra as mulheres é raramente considerada um fator relevante pelas autoridades nacionais em decisões sobre a guarda de crianças. Também não há dúvidas de que a violência do parceiro íntimo afeta predominantemente as mulheres, entretanto, a correlação entre violência doméstica contra mulheres e abuso infantil é, na maioria das vezes, subestimado pelos profissionais de direito e pelos tribunais. O preconceito de gênero contra mulheres em tais contextos é prevalente ao mesmo tempo em que as mulheres vítimas de violência por parte dos parceiros íntimos correm maior risco de obterem resultados negativos com relação as questões sobre guarda e visitação. Além disso, o preconceito discriminatório de gênero frequentemente induz à desconfiança na mulher, especialmente com relação a supostas falsas alegações de abuso infantil e violência doméstica. A este respeito, os especialistas insistiram que uma abordagem holística e sincronizada, baseada em critérios internacionais e regionais existentes, deva ser aplicada a nível nacional em tais casos, não apenas a fim de assegurar o princípio do melhor interesse da criança, mas também o princípio da igualdade entre mulheres e homens. Tal abordagem é corroborada pela jurisprudência de vários tribunais internacionais, Órgãos de tratados da ONU e outros mecanismos relevantes.
No caso Jessica Lenahan (Gonzales) contra os Estados Unidos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), chamou a atenção sobre as obrigações do Estado em acudir situações de violência doméstica com medidas protetivas diligentes, e analisou a correlação entre violência por parceiro íntimo contra mulheres e o abuso infantil, em particular nos casos de separação matrimonial 2. A CIDH concluiu pela responsabilização internacional do Estado, uma vez que seus agentes falharam em assegurar o cumprimento da medida protetiva assegurada à Sra. Lenahan; não cumpriram com suas obrigações de devida diligência; e falharam em proteger os direitos das crianças que foram raptadas e assassinadas pelo pai.
No caso Gonzalez 3, no qual um pai abusivo, durante uma visita não supervisionada, assassinou sua filha e depois tirou a própria vida, o Comitê CEDAW descobriu que, ao decidir permitir visitas não supervisionadas, sem considerar os antecedentes de violência doméstica, as autoridades espanholas não cumpriram suas obrigações de devida diligência nos termos da Convenção (par. 9.7). O Comitê recomendou, entre outras coisas, que qualquer histórico de violência doméstica deva ser considerado na determinação da programação das visitações, a fim de assegurar que estas não coloquem as mulheres ou crianças em risco.
Estes e outros casos semelhantes poderiam ter sido evitados se as autoridades tivessem exercido sua obrigação internacional de aderir a um critério de devida diligência a fim de prevenir, investigar, processar e punir os perpetradores de violência contra as mulheres, incluindo violência íntima e doméstica.
Além destes fatos, os especialistas reiteraram que a Recomendação Geral da CEDAW nº 35 (2017), que dispõe sobre violência baseada em gênero contra as mulheres e atualiza a Recomendação Geral nº 19, afirma que “Os direitos ou pedidos dos agressores ou alegados agressores durante e após os processos judiciais, nomeadamente no que respeita à propriedade, privacidade, guarda de menores, acesso, contatos e visitas, devem ser determinados à luz dos direitos humanos das mulheres e crianças à vida e à integridade física, sexual e psicológica, e orientados pelo princípio do interesse superior da criança”.
O modelo interamericano de lei para Prevenir, Punir e Erradicar a Morte Violenta de Mulheres Femicidio/Feminicidio, em seu artigo 10, atesta que “Qualquer pai sujeito a processo penal pelos delitos de femicidio/feminicídio e indução ao suicídio, consumados ou em grau de tentativa, tem suspenso o exercício da parentalidade, sendo as crianças filhos da vítima ou não, até a decisão final do processo criminal. O direito do exercício da parentalidade será concedido temporariamente àquele que estiver de acordo com o melhor interesse dos menores”.
O Protocolo de Maputo, em seu artigo 7, explicitamente afirma que “em caso de separação, divórcio ou anulação de casamento, mulheres e homens devem ter direitos e responsabilidades recíprocas para com seus filhos. Em todos os casos, os interesses das crianças devem ter supremacia”.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul) é o único instrumento legal compulsório sobre violência contra as mulheres que tem uma disposição explicita sobre a guarda de menores em tais situações. Seu artigo 31 determina aos Estados: “As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que, ao determinar a custódia e os direitos de visita das crianças, sejam tomados em consideração incidentes de violência cobertos pelo âmbito de aplicação da presente Convenção.” E ainda “As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que o exercício dos direitos de visita ou de custódia não comprometa os direitos e a segurança da vítima ou das crianças.” A junta de especialistas que monitora a implementação dos critérios da Convenção (GREVIO), encontrou evidências de preconceito de gênero contra mulheres nas decisões sobre guarda de menores e falta de cuidado por parte dos tribunais com relação a padrões de abuso cometido pelos pais em todos os 10 Estados signatários monitorados até então.
Os especialistas, indo além, desencorajaram o abuso do conceito de "Alienação Parental" 4 e de conceitos e termos semelhantes, utilizados a fim de negar a guarda dos filhos à mãe, concedendo-a a um pai acusado de violência doméstica, de uma forma que desconsidera absolutamente os possíveis riscos para a criança. Com relação a isso, o Comitê de Especialistas do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção de Belém do Pará (MESECVI), na Declaração de 2014 sobre Violência contra Mulheres, Meninas e Adolescentes e seus direitos sexuais e reprodutivos recomenda, explicitamente, durante as investigações para determinar a existência de violência, proibir “evidências baseadas no descrédito de testemunho com base na suposta Síndrome de Alienação Parental”. Os especialistas também expressaram preocupação com a recente inclusão de "alienação parental" como um termo indexado na nova Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da OMS como um “problema relacional do cuidador com a criança” que poderia ser mal utilizado se aplicado sem se levar em consideração os critérios internacionais mencionados acima, os quais requerem que incidentes de violência contra as mulheres sejam levados em conta e que o exercício de quaisquer direitos de visitação ou guarda não coloque em risco os direitos e a segurança da vítima ou das crianças. Acusações de alienação parental por pais abusivos contra mães precisam ser consideradas como uma perpetração de poder e controle, por parte de órgãos e agentes governamentais, incluindo aqueles que tomam decisões sobre a guarda dos menores.
Concluindo, a Plataforma reitera seu apelo para que, na determinação da guarda e direito de visitação às crianças, a violência contra a mulher seja levada em conta em todos os casos de disputa de guarda e que, os direitos ou reivindicações dos perpetradores durante e após os procedimentos judiciais, incluindo no que diz respeito à propriedade, privacidade, guarda de menores, acesso, contato e visitação, devam ser determinados à luz dos direitos humanos à vida e à integridade física, sexual e psicológica das mulheres e das crianças, e guiadas pelo melhor interesse da criança.
Referencias indicadas no texto por numeração:
1 https://www.ohchr.org/EN/Issues/Women/SRWomen/Pages/CooperationGlobalRegionalMechanisms.aspx
Dubravka Šimonovic, Relatora Especial sobre a violência contra as mulheres, suas causas e consequências; Hilary Gbedemah Presidente do Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres; Ivana Radačić, Presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre a questão da discriminação contra as mulheres na lei e na prática; Feride Acar, presidente do Grupo de Especialistas em Ação contra a Violência contra a Mulher e Violência Doméstica do Conselho da Europa; Margarette May Macaulay, Relatora dos Direitos da Mulher da CIDH, Lucy Asuagbor, Relatora Especial sobre os Direitos da Mulher na África e Sylvia Mesa, Presidente do Comissão de Peritos do Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará.
2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Caso No. 12.626 Lenahan e outros. v. os Estados Unidos: www.oas.org/en/iachr/decisions/2011/USPU12626EN.doc
Jessica Lenahan, vítima de violência doméstica junto com suas filhas Leslie, Katheryn e Rebecca Gonzales obteve uma medida protetiva contra o ex-marido da Sra. Lenahan e pai das crianças. Em 1999, as filhas de Lenahan foram sequestradas por seu ex-marido e mortas em frente à delegacia de Castle Rock (Colorado), depois que as autoridades policiais se recusaram repetidamente a fazer cumprir sua medida protetiva por violência doméstica contra ele.
3 Comunicação CEDAW n. 47/2012, disponível em:
https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CEDAW/Pages/JurisprudenceSession58.aspx
4 A alienação parental, ao mesmo tempo que carece de uma definição clínica ou científica universal, geralmente se refere à suposição de que o medo ou rejeição de uma criança a um dos pais (normalmente o que não detém a guarda), decorre da maléfica influência do preferido (normalmente detentor da guarda).
ASSINADO POR:
Dubravka Šimonovic, Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher, suas causas
e consequências
Hilary Gbedemah, Presidente da CEDAW
Ivana Radačić, Presidente do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Discriminação
contra as mulheres na lei e na prática
Feride Acar, presidente do GREVIO
Margarette May Macaulay, Relatora sobre os Direitos da Mulher na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Lucy Asuagbor, Relatora Especial sobre os direitos das mulheres na África
Sylvia Mesa, Presidente do MESECVI
Relatório Final da Plataforma EDVAW original disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/SR/StatementVAW_Custody.pdf
A plataforma de mecanismos independentes sobre a eliminação da discriminação e violência contra a mulher das Nações Unidas (Plataforma EDVAW) disponível em: https://www.ohchr.org/EN/Issues/Women/SRWomen/Pages/CooperationGlobalRegionalMechanisms.aspx